Documentando decisões arquiteturais – Da visão à prática
Porque pensar bem vem antes de programar certo.
Um sistema é tão bom quanto as decisões que o sustentam. Cada escolha de arquitetura – da estrutura de dados ao padrão de comunicação entre serviços – incorpora uma expectativa sobre o negócio, o comportamento de usuários e o ambiente operacional. Quando essas escolhas são registradas, a empresa ganha memória corporativa, consistência e argumentos para evoluir. Quando não são, a organização se perde em debates circulares, repete erros e fica refém de narrativas orais. Documentar decisões não é burocracia; é um ato estratégico que conecta a visão à prática.
O problema do conhecimento tácito
Nas primeiras fases de uma startup, é comum que as decisões sejam tomadas informalmente, em conversas rápidas entre fundadores, líderes de produto e desenvolvedores. As justificativas são óbvias para quem estava na sala, mas ninguém as registra. O código cresce, a equipe multiplica, pessoas entram e saem. Meses depois, alguém pergunta: “Por que usamos este framework de ORM?” e as respostas variam: “porque na época era o mais simples”, “porque o fulano gostava”, “porque era o único que funcionava com nosso banco”. Nenhuma delas é mais que um palpite.
Esse conhecimento tácito se torna um problema sério quando o negócio escala. Investidores exigem governança, auditores pedem rastreabilidade, novos engenheiros precisam entender o legado e decisões de ontem condicionam a inovação de amanhã. Sem documentação, a empresa fica refém do acaso. Decisões importantes se perdem em e-mails, chats ou na mente de quem já saiu. A falta de contexto gera retrabalho: novas equipes repetem experimentos, descartam soluções que já foram testadas e sofrem com códigos com história mal contada.
Michael Nygard, em Release It!, conta casos em que a falta de registro dos “porquês” levou empresas a implementar soluções redundantes, comprar softwares desnecessários e repetir falhas de segurança. Quando chegou a hora de auditar, ninguém sabia explicar por que determinada tecnologia havia sido escolhida, e a empresa gastou milhões para refazer algo que havia sido construído há anos.
O que são Architecture Decision Records (ADRs)?
ADR, ou Architecture Decision Record, é um documento curto e estruturado que registra uma decisão arquitetural. Criado pelo próprio Nygard, ele segue um formato simples: apresenta contexto, decisões, opções descartadas e consequências. O objetivo é que qualquer pessoa, ao ler um ADR, entenda a motivação e as implicações daquela escolha em poucos minutos. Um ADR típico contém:
Título: descreve em uma frase o que foi decidido (por exemplo, “Escolha de banco de dados NoSQL para módulo X”);
Contexto: explica a situação que levou à decisão, incluindo requisitos, restrições, e informações sobre o negócio, usuários e tecnologia;
Decisão: descreve a solução escolhida, por que foi escolhida, e quem participou da decisão;
Alternativas consideradas: mostra outras opções avaliadas, com argumentos a favor e contra;
Consequências: lista efeitos imediatos e de longo prazo, positivos e negativos, e ações derivadas (por exemplo, “adotar NoSQL implica em replicar dados manualmente e monitorar consistência”);
Data e status: registram quando a decisão foi tomada e se ainda está em vigor ou foi revisada.
Neal Ford e Mark Richards, em Software Architecture: The Hard Parts, reforçam que o “porquê” (racionalidade) é mais importante que o “como” (implementação). A implementação pode mudar, mas a lógica que levou à escolha permanece relevante. Um ADR bem escrito ensina novas gerações de desenvolvedores por que a empresa evita determinado framework ou por que optou por dividir o monólito apenas em certos domínios.
Benefícios de documentar os porquês
Alinhamento e transparência – Quando decisões são registradas com clareza, todos na organização compreendem as motivações. Isso reduz ruído e evita discussões repetitivas. Times de produto entendem por que determinadas features têm restrições, operações sabem onde estão as fragilidades e times de compliance podem verificar se a tecnologia atende às normas.
Aceleração do onboarding – Novos engenheiros e arquitetos não precisam se perguntar o motivo das escolhas; os ADRs fornecem contexto histórico. Isso acelera a capacidade produtiva de novos colaboradores e reduz a dependência de “gurus” que conhecem tudo de cabeça.
Base para revisões – Quando o contexto muda (crescimento de tráfego, mudança de estratégia, alteração legislativa), as decisões podem ser revisadas com base em suas justificativas originais. Se um ADR indica que a escolha de não usar replicação geográfica se devia ao baixo volume inicial, é mais fácil revisitar essa decisão quando a visão de expansão global se torna realidade.
Rastreabilidade e governança – Investidores e reguladores exigem que a empresa saiba explicar como protege dados, como administra transações e como decide mudanças críticas. ADRs fornecem material para auditorias e relatórios de conformidade. Eles mostram que as decisões não são arbitrárias, mas baseadas em critérios e aprovadas por responsáveis.
Prevenção de decisões ruins – Ao descrever alternativas descartadas, os ADRs revelam contrapartes que podem ser úteis no futuro. E ao expor consequências, alertam sobre limitações que poderiam passar despercebidas em discussões apressadas. O ato de escrever obriga os decisores a refletirem mais profundamente, o que por si só aumenta a qualidade da escolha.
Como incorporar ADRs à cultura da empresa
Definir padrões e templates – Crie um template de ADR simples, adaptado ao contexto da empresa, e disponibilize a todos. Explique que não se trata de relatórios longos, mas de registros rápidos e direcionados.
Registrar as decisões ao serem tomadas – Não adie a escrita. Documente logo após a decisão, enquanto a motivação está fresca.
Revisar periodicamente – Estabeleça momentos (trimestrais ou semestrais) para revisar ADRs e verificar se ainda fazem sentido. Marque ADRs como superseded (superado) quando uma decisão é alterada. Essa revisão ajuda a manter o conhecimento atualizado e evita duplicidade.
Facilitar acesso e comunicação – Armazene ADRs em repositórios acessíveis (como Git) ou wikis, e divulgue internamente. Faça workshops para apresentar decisões cruciais a todas as áreas. Garanta que líderes de produto e operações entendam o conteúdo.
Incentivar a participação de stakeholders – Um ADR fica mais rico quando inclui perspectivas de diferentes áreas. Ao registrar uma decisão sobre política de logs, convide profissionais de segurança e jurídico para oferecerem insumos. Isso garante que a decisão esteja alinhada à visão e considere limitações de todos os lados.
Exemplos práticos de ADRs
Imagine que uma empresa de e-commerce precise decidir como armazenar dados de sessão de usuários. Três opções surgem: banco relacional, Redis e cookies persistentes. O ADR mostraria:
Contexto: alta frequência de acesso, necessidade de escalabilidade horizontal, latência baixa, dados de sessão com expiração curta.
Decisão: uso de Redis por causa da latência e capacidade de escalar horizontalmente.
Alternativas: banco relacional (acesso lento, mas boa consistência), cookies (sem custo de infraestrutura, mas risco de segurança e tamanho limitado).
Consequências: necessidade de adicionar mecanismo de failover ao Redis para alta disponibilidade; custo de infraestrutura; monitoramento da expirabilidade.
Em outra situação, uma fintech decide adotar API aberta para integrar com parceiros. O ADR registraria que a decisão foi tomada para acelerar integrações e captar parceiros, apesar do aumento de superfície de ataque. Como consequência, a empresa decide investir em WAF (Web Application Firewall) e monitoramento de APIs. Depois de três anos, ao rever o ADR, a empresa pode decidir evoluir para um gateway de API mais robusto, pois o número de parceiros e requisições cresceu.
Como a IA pode apoiar na construção de ADRs
A escrita de ADRs exige clareza e disciplina, mas isso não significa que precise ser um processo pesado. Modelos de linguagem (LLMs) podem atuar como assistentes de raciocínio, ajudando times a transformar conversas e decisões dispersas em registros estruturados. Em vez de substituir o julgamento técnico, a IA pode organizar, sugerir e acelerar o processo de documentação, permitindo que as pessoas se concentrem no essencial: pensar bem.
Aqui estão três formas práticas de usá-la:
Transformar discussões em decisões documentadas
Ao integrar um modelo de linguagem a canais de comunicação (como Slack, Jira ou Notion), é possível capturar automaticamente decisões que emergem em reuniões ou threads de chat. A IA identifica padrões de decisão — frases como “decidimos usar… porque…” — e propõe um rascunho de ADR, preenchendo seções de contexto, decisão e alternativas. O arquiteto ou tech lead revisa e valida o conteúdo, garantindo precisão e autoria.
Gerar e comparar alternativas técnicas
Diante de um problema, LLMs podem ajudar a explorar opções, vantagens e riscos de diferentes abordagens. Por exemplo, ao avaliar entre Kafka e RabbitMQ, a IA pode listar critérios de escolha com base no contexto descrito (volume de mensagens, SLA, custo, maturidade da equipe). Isso estimula uma análise mais rica e reduz o viés do “gosto pessoal” na decisão. O resultado pode alimentar diretamente a seção “Alternativas consideradas” do ADR.
Analisar coerência e impacto das decisões ao longo do tempo
Com um conjunto de ADRs versionados em um repositório, um modelo de linguagem pode revisar periodicamente os documentos e detectar inconsistências, decisões conflitantes ou oportunidades de revisão. Por exemplo, pode sinalizar que um ADR antigo definia um padrão de autenticação diferente do adotado em serviços recentes. Essa leitura transversal ajuda times a manter a arquitetura coerente e a governança viva.
Em suma, a IA amplia a capacidade de uma organização refletir sobre si mesma. Ela não substitui o raciocínio arquitetural — mas torna o processo de pensar, registrar e revisar decisões mais contínuo, acessível e inteligente. O que antes dependia apenas da memória e disciplina humana pode agora se transformar em um sistema de aprendizado organizacional, onde cada decisão alimenta a próxima com mais contexto e menos ruído.
Da visão à prática: os porquês que sustentam a estratégia
Quando líderes apresentam uma visão arrojada – expandir para novos mercados, lançar produtos disruptivos, multiplicar a base de usuários – a equipe de arquitetura fica responsável por traduzir essa visão em decisões concretas. Documentar os porquês dessas decisões fortalece a ponte entre ambição e execução. Ao revisitar os ADRs, líderes podem avaliar se a estratégia ainda se sustenta ou se precisam redirecionar investimentos.
No longo prazo, uma empresa que mantém registro de suas decisões constrói um diferencial competitivo: ela aprende com seu próprio histórico, evita armadilhas, acelera a inovação e demonstra maturidade. Essa empresa também cria uma cultura em que questionar, registrar e revisar se torna natural. E isso, por si só, melhora a qualidade das discussões e aproxima a prática da visão. O resultado são sistemas que evoluem com coerência, equipes que gastam menos tempo em debates vazios e lideranças que tomam decisões baseadas em conhecimento sólido.


